domingo, 2 de fevereiro de 2014

Wenlock Hospital

Depois de 5 semanas de trabalho no Hospital Father Muller que, como já explicámos num post anterior, é intermédio entre um hospital público e um privado (e por isso não tão diferente dos nossos como queríamos ver aqui na Índia) decidimos ir ver como se trabalha num verdadeiro hospital público, que no caso de Mangalore é o Wenlock Hospital. Sempre que dizíamos no Father Muller aos médicos de lá que íamos estagiar para o Wenlock a reacção era a mesma: caras de choque e a pergunta "mas porquê? vocês são doidos!". 

Nos primeiros dias que passámos no Hospital Wenlock ficámos sem perceber o porquê dos comentários. Para começar tratámos das burocracias do costume para obter a autorização da Directora do Hospital, mas desta vez muito facilitadas pela Dra. Susan D'Souza, que conhecemos por ser mãe de um interno que estava na nossa equipa na Medicina Tropical e que é Oftalmologista neste Hospital. Foi uma das pessoas que mais gostámos de conhecer, dentro e fora do Hospital.
Levou-nos primeiro a conhecer as várias vertentes do Hospital, incluindo o Hospital Pediátrico, novo e com equipamentos de ponta, que foi financiado por uma empresa privada e cedido ao sector público, que o gere.

A fachada do recente edifício da Pediatria do Hospital Público de Mangalore
A Unidade de Cuidados Intensivos Neonatais, bastante bem equipada.
Um dos bebés prematuros que são monitorizados nesta Unidade
Antes de entrar na Sala de Operações da Pediatria lê-se a mensagem "Entrem aqui com humildade e deixem à porta não só os sapatos mas também a raiva, o ego e o orgulho".
Estivémos também na Maternidade, que está metade de pé metade em demolição, por estarem a aumentar as áreas do Hospital. Num país com uma das taxas de natalidade mais altas do mundo, as maternidades têm uma afluência enorme, o que pudémos comprovar pela lotação esgotada das enfermarias do Hospital, pelo número de partos mensais (cerca de 400) e pelo número de grávidas que esperavam pela hora do parto... No dia em que estivemos na Maternidade, à hora de almoço já tinham nascido 8 pequenos indianos!

Entrada da Maternidade Lady Goschen Hospital
As consultas externas. O médico está numa mesa ao centro e à volta reúnem-se as doentes, à espera pela sua vez.


As enfermarias com mais do que uma grávida/mãe por cama...
Os corredores do Hospital...
... que servem também como enfermarias!
A primeira impressão digital.
Mas não era só de doentes que o Hospital estava cheio!

Aqui a determinação do sexo da criança durante a gravidez é proibida. Na Índia, nas famílias mais tradicionais, após o casamento, a mulher vai viver para casa da família do marido e é esperado que os pais da noiva lhes dêem um dote pelo casamento, o que muitas vezes significa darem uma grande parte do que têm à família do noivo. Assim, tem-se assistido a inúmeros casos em que as famílias, para evitarem terem que se colocar em situações de dívida e pobreza devido aos casamentos das filhas, abortam com meios rudimentares por si próprias ao saber que o bebé é do sexo feminino. 
Para evitar este problema é proibido por lei que os profissionais de saúde informem os pais sobre o sexo da criança antes desta nascer.



À entrada do Hospital existe uma banca com uma enfermeira que faz a vacinação das crianças ainda não imunizadas contra a poliomielite, mantendo assim esta doença erradicada do país.

No centro do Hospital, as famílias das pacientes lavam e secam as roupas.
De seguida foi a vez de conhecermos o serviço de urgência do Hospital, a "Casualty" no edifício principal, e foi aqui que começámos a perceber os comentários que ouvíamos antes.


A sala da urgência tem cerca de 15 camas e estão presentes várias enfermeiras na sala. A nível médico, apenas estão na sala estudantes de Medicina, do último ano como nós, que vão resolvendo os problemas como podem, colocando cateteres, algálias, fazendo ECGs e prescrevendo medicação (a que existe), a maior parte das vezes sem terem acesso a qualquer processo médico ou a história clínica dos doentes. Existem médicos responsáveis pela Urgência que apenas se dirigem lá quando chamados pelos estudantes, no caso de haver algum problema que não consigam resolver. 

Uma das marquesas de exame da Urgência.
Medicamentos disponíveis na sala da Urgência

Quanto à higiene, não existem máscaras e as luvas são para serem muito bem geridas.
Aqui o trabalho dos enfermeiros é realmente de alto risco. Vimos algálias serem colocadas sem luvas, pessoas com suspeitas de tuberculose (e não há mascaras...) e colocações de acessos venosos com sangue a escorrer para as mãos (sem luvas) da enfermeira, que inclusive tapava a torneira com os dedos para o sangue não sair... um filme!

Em algumas zonas do Hospital, por motivos de higiene... anda-se descalço!



Posters científicos em hindu
Os restantes dias foram passados na Medicina Interna com o Director do Departamento de Medicina, um médico e professor de grande reputação aqui, já com 6 livros médicos escritos por ele e sendo um dos revisores de livros que usamos regularmente, como o Bates, de exame físico. As manhãs começavam no escritório dele, com ele a colar 9 folhas A4 umas nas outras para nos mostrar "a magia", como ele lhe chamava e que seria 1h30 de Fisiologia e Patologia cardíaca e renal, ensinadas bem ao estilo Dr. Najeeb!

A preparação da aula...
A aula ao estilo Dr. Najeeb!
O resultado final.
As rondas eram partilhadas com outros estudantes de Medicina e íamos tentando responder o melhor possível às infinitas questões que são colocadas sobre cada paciente. Eles são realmente bons no que toca ao exame físico, até porque muitas vezes não têm acesso fácil a Radiografias, Ecografias e outros exames que temos em Portugal muito mais disponíveis. Assim, raramente se acaba de fazer a história do paciente e o exame físico sem um diagnóstico praticamente definitivo, presumido através da experiência clínica neste contexto de escassez de recursos, o que acaba por ser uma óptima aprendizagem para nós!

A vista do Hospital...
Nesta semana que passámos no Hospital Wenlock,  a Dra. Susan foi a pessoa de referência para nós, mas não se ficou por estar connosco no Hospital. Como percebeu que gostamos de viajar fez questão de nos levar a alguns sítios giros por perto que ainda não tínhamos conhecido e também a experimentar mais algumas iguarias da cozinha indiana!

Entrada de um templo hindu em Mangalore

O jardim zoológico de Pilikula...
... e as suas maiores atracções.


Thali do Norte da Índia (à esq) e do Sul da Índia (à dta). Cada prato é uma combinação de pequenas porções de comidas típicas de diferentes zonas da índia, que se vão misturando (sim, com a mão direita!) com o arroz (ao centro) ou com naan ou parota (tipos de pão).
A Dr. Susan levou-nos também a conhecer sítios típicos em Mangalore onde se fazem os principais produtos da região.



Filipe, devias levar a moda do Lungi para Portugal! Ou pelo menos a dança... 
E com esta experiência deixamos Mangalore.
Foram 6 semanas que vão deixar saudades. Os estágios nos Hospitais, os passeios pelo Sul da Índia, a comida... e sobretudo as pessoas. Essas são as que vão deixar mais saudade. 
Até um dia, Mangalore!

1 comentário:

  1. Maltinha!! Gostei imenso desse vosso Post!! Super concreto! Bom, dá para ter uma ideia cultural da questão do nascimento feminino que já tinha quando contactei com diversos Indianos em França!!! No entanto, fiquei também a saber que mesmo no meio mais tradicional, já não é bem um "segredo" a questão do sexo no nascimento! As condições dos hospitais também me deixaram curioso. Os meus colegas já me tinham dito que as lotações são frequentes! Agora mais para o lado da brincadeira... como é que deixaram o Kali andar sem meias e sem sapatilhas !? Tá tudo louco...essa malta não tem bem a noção do "perigo" :) ehehe!! Muito bom!! ;) Like!!!!

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